segunda-feira, 19 de maio de 2008

La Negra


Nos anos 60, diversos artistas vindos da burguesia e da classe média passaram a buscar e a se interessar pelas tradições musicais populares. Alguns deles estavam movidos pelas questões políticas da tal arte engajada (que visava educar o povo para a revolução), e outros pelo desejo de encontrar suas origens e ouvir o que o povo tem a dizer. Assim, Bob Dylan resgatou as canções folk americanas, Carlos Lyra e seus colegas do CPC (Centro Popular de Cultura) trouxeram o samba do morro e o baião da caatinga para as salas de teatro e Geraldo Vandré se inspirou no ritmo ternário da guarânia para compor “Pra não dizer que não falei das flores”.


Na Argentina, uma das principais expoentes desse movimento em direção às raízes culturais – batizado na América Latina de Nueva Canción – foi a cantora Mercedes Sosa. Apelidada de La Negra devido à cor de seus cabelos, essa argentina de ascendência quéchua gravou como intérprete um vasto repertório de zambas, milongas, canciones e outros gêneros típicos de sua terra.



Mercedes é dona de uma voz grave, forte e ao mesmo tempo suave, que é acompanhada, na maioria das gravações, por apenas um violão e um bombo legüero, instrumento tradicional do norte da Argentina que é tocado pela própria cantora. Militante de esquerda que foi presa e exilada durante a ditadura argentina, La Negra expõe por meio da arte as veias abertas de sua terra. Mas também mostra ter orgulho de seu sangue.

ps: além do Youtube, sites p2p e afins, um bom meio de se conhecer a arte de Mercedes Sosa é dar um pulinho nos sebos do centro de São Paulo, que têm para vender LPs da cantora a dez, cinco, três reais.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

MPB na ponta de Língua

Com o maior acesso à internet, músicas brasileiras quase esquecidas voltam a fazer sucesso entre o público jovem


No final dos anos 60 e início dos anos 70, surgiam no Brasil jovens artistas que inventavam seu próprio modo de tocar, de se vestir e de se portar, muitas vezes chocando a conservadora sociedade brasileira, mas conquistando o ouvido dos mais novos e tornando-se ídolos. Nos últimos anos, com a cada vez maior abrangência da internet e os enormes avanços tecnológicos, como a banda larga e os arquivos no formato mp3, tais nomes voltaram a figurar entre as preferências do público jovem. É o que se constata em qualquer roda de violão de faculdades brasileiras. Ao invés de rock e pop predominarem no gosto musical dos jovens, é comum detectar rapazes barbados e moças com vastas cabeleiras, roupas surradas e letras de Chico Buarque afiadas na ponta língua.

Um exemplo de que a possibilidade de baixar arquivos em mp3 pode modificar gostos musicais é o estudante de engenharia Luiz Felipe Pinheiro, 20 anos. Ele já foi guitarrista de três bandas de hardcore, ritmo do qual não quer mais saber. Para ele o negócio agora é a MPB. O estudante conta que começou a ouvir antigos sucessos sem querer: “um dia resolvi pegar na internet. Me lembro de meus pais ouvindo essas músicas quando eu era mais novo. Acabei gostando, e agora praticamente só ouço isso”. Quem aprova o “novo gosto” do rapaz é a mãe de Luiz, Ruth: “Antes ele vivia reclamando das músicas que eu e o pai dele ouvíamos. Hoje é ele quem nos mostra discos que não conhecíamos, de artistas que sempre admiramos. Ele e os amigos se reúnem aos fins de semana para tocar Toquinho, Vinícius (de Moraes) Tom Jobim, João Gilberto, Chico (Buarque). Junta até gente pra ver!”.

Caso um pouco diferente é o da estudante de jornalismo Talita Duvanel, 21 anos. Ela conta que não foi por causa da Internet que começou a ouvir MPB, mas sim pela influência do cunhado, dono de uma vasta coleção de discos. Entretanto, Talita afirma que baixar as versões em mp3 das músicas que gosta só fez a paixão aumentar: “A questão do download com certeza me ajudou a conhecer mais. É bem difícil achar pessoas que tenham esses cds antigos”. Ela revela o porquê de gostar tanto de músicas que outros jovens consideram para “velhos”: “Foi um período muito importante, por causa da ditadura militar apertando no Brasil. E foi também o período mais fértil da MPB. Principalmente em 68, 69 e 70. Meu disco favorito é dessa época, Caetano, de 68”. Por causa das músicas ela também acabou apaixonando-se pela história dos anos de chumbo. “Comecei a ler bastante, principalmente sobre 68, um ano marcante pra história. O ano que não terminou, do Zuenir (Ventura), que fala sobre esse tempo, é um dos meus favoritos”.

Luiz é freqüentador assíduo do blog Loronix, do carioca Zeca Louro. Na rede há um ano e dez meses, o Loronix é visitado tanto por brasileiros (cerca de 48% dos acessos) quanto estrangeiros, por isso é escrito em inglês. O site já se tornou referência num novo modelo de blog que ganha cada vez mais a atenção dos internautas: os que disponibilizam discos inteiros para o download.
Zeca revela que os discos disponíveis em seu blog são quase todos do acervo pessoal, mas que muitos freqüentadores colaboram e tornam a coletânea ainda mais vasta. Uma das principais características do Loronix é o de nunca disponibilizar o download de discos que ainda estão no mercado, para não prejudicar as vendas. “É exatamente esse o propósito do Loronix, oferecer aos amantes da música brasileira em todo o mundo a oportunidade de conhecer artistas e discos que não possuem mais nenhuma perspectiva comercial. Conto com a ajuda da comunidade para avisar que determinado disco foi relançado. Quando acontece, ele é retirado imediatamente”, explica.

E os artistas? O que acham de verem seus discos colocados na íntegra gratuitamente na internet? Zeca conta que, ao contrário do que muitos pensam, os artistas gostam sim: “Vários artistas se declaram fãs do Loronix. Até agora nenhum artista reprovou o serviço”. Indagado se já recebeu depoimentos de jovens que passaram a gostar do estilo por causa do blog, emenda: “Recebi vários depoimentos. Alguns bastante entusiasmados”.

Em 2006 uma outra ferramenta popularizou-se entre os internautas e deu ainda mais fôlego para a música em formato digital: O surgimento de sites como o youtube, onde vídeos podem ser assistidos gratuitamente. Luiz Felipe diz que a inovação acabou atraindo ainda mais os jovens, já que agora é possível ver os artistas em performances ao vivo: “Os vídeos dos grandes festivais são muito legais! Tem um sobre o terceiro Festival (Internacional da Canção) que mostra bem como eram os festivais”, comenta.

Zeca Louro define bem a importância desse novo interesse na MPB. “Certamente cria uma nova demanda, uma nova audiência. Mesmo o pessoal mais antigo descobre através do Loronix artistas que nunca teriam oportunidade de conhecer em outros meios”, diz. Os artistas brasileiros agradecem.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Os subterrâneos

The Velvet Underground & Nico, o disco que jogou sombras sobre a Era de Aquário
A metedrina é um tipo de anfetamina que pode ser cheirada, fumada, injetada ou consumida em forma de comprimido. Provoca euforia, acende a libido, aumenta a capacidade de atenção e dá energia para que se fique acordado por muitas horas, mas também desencadeia a paranóia e deixa a pessoa tensa, travada, uptight. Na segunda metade dos anos 60, enquanto a onda Flower Power propunha “abrir as portas da percepção” por meio do uso de alucinógenos como o LSD, a metedrina era a droga favorita dos freqüentadores da Factory, estúdio/QG de Andy Warhol: artistas, cineastas, fotógrafos, travestis, freaks e os integrantes de uma banda novata chamada The Velvet Underground. Este grupo, descoberto e levado ao reino da pop art por Paul Morrisey (cineasta e parceiro de Warhol), lançaria em 1967 o álbum The Velvet Underground & Nico, um amálgama até então inédito entre vanguarda e rock’n’roll e um registro de ceticismo em meio à psicodelia paz e amor.

De cara, a sonoridade do Velvet chama a atenção pela presença de uma viola elétrica, tocada por John Cale. Artista ligado à música erudita contemporânea, ele havia sido aluno de seu quase xará John Cage (compositor cuja peça mais famosa é 4’33’’, que consiste em quatro minutos e trinta e três segundos de silêncio) e feito parte do Dream Syndicate, grupo cujas músicas podiam durar dias, já que não raro uma mesma nota era tocada ininterruptamente por horas a fio. Cale também gravou o piano e o contrabaixo em The Velvet Underground & Nico. Os demais integrantes eram o guitarrista Sterling Morrison, a baterista andrógina Maureen Tucker e o guitarrista/vocalista Lou Reed, compositor de todas as músicas do grupo. Gay, usuário de drogas pesadas, arrogante, ególatra e genial, Reed era uma espécie de beatnik do rock, Bukowski com uma guitarra na mão. Sua poesia crua retratava o submundo de Nova York, universo que conhecia de perto. Mas sua postura anti-rockstar fez com que Paul Morrisey o considerasse inadequado para o posto de frontman. Então chamou Nico, modelo/atriz/cantora alemã para ser a vocalista. Reed ficou furioso. Do embate entre Morrissey (que a queria cantando todas as faixas do disco que o Velvet iria gravar) e ele (que queria a moça bem longe da SUA banda), Nico acabou ficando com os vocais de três das onze canções.

Traficantes e sadomasoquismo

Diz a lenda e o encarte do disco que The Velvet Underground & Nico foi produzido por Andy Warhol. Na verdade, quem supervisionou a gravação foi o onipresente Paul Morrisey, cabendo a Warhol apenas a arte da capa: a foto estilizada de uma banana com o aviso “Peel slowly and see” (“Descasque com cuidado e veja”). Conselho perfeito para orientar a audição de um álbum difícil, incomum e incômodo.

Ele começa com “Sunday Morning”, baladinha calma que “engana” o ouvinte. Lou Reed canta serenamente, guitarras sem distorção emitem acordes consonantes e uma celesta (instrumento cujo som lembra o de pequenos sinos) traça melodias que parecem ter saído de uma caixinha de música. Mas, prestando atenção na letra, já é possível encontrar referência à paranóia: “Watch out! The world’s behind you” (“Cuidado! O mundo está atrás de você”).

Na segunda faixa, “Waiting for the man”, o clima começa a pesar. Sobre uma base de rock’n’roll (quase) tradicional, a letra em primeira pessoa narra a história de um cara esperando seu traficante (o tal “homem” do título) em um bairro barra-pesada. O tom é de crônica urbana e apenas nos dois últimos versos se encontra uma certa (auto)crítica ao modo de vida junkie: “I’m feeling good, I’m feeling so fine/ Until tomorrow, but that’s just another time” (“Eu me sinto bem, eu me sinto tão legal/ Até amanhã, mas aí são outros quinhentos”).

Mas o Velvet mostra a que veio realmente em “Venus in Furs”. O nome da música foi tirado de um livreco pornográfico sadomasoquista, e é disso mesmo que ela trata: dominação, chicotadas, cintadas, botas de couro. A letra “meiga” é acompanhada por um instrumental quase hipnótico: Maureen Tucker executa uma mesma e simplíssima levada de bateria (uma batida no pandeiro, duas no bumbo) durante toda a faixa, John Cale extrai notas insistentes e meticulosamente desafinadas de sua viola, enquanto as guitarras toscamente tocadas por Morrison e Reed seguram a harmonia. O clima de hipnose ressurge em “All Tomorrow’s Parties”, canção cujo tema é aparentemente o mais banal possível: uma garota que chora por não ter roupa para ir a festas. Mas o arranjo minimalista-caótico, a voz grave e monocórdica de Nico e o talento de Reed com as palavras faz com que seja possível sentir o sofrimento da garota “por quem ninguém irá lamentar” (“For whom none will go mourning”).

O ponto alto do disco é “Heroin”, provavelmente a combinação mais perfeita entre conteúdo e forma da história do rock, representando por meio de sons os efeitos da heroína. A música começa relativamente calma, com uma batida constante. Conforme a droga caminha pelo sangue para chegar ao cérebro, a bateria/coração vai acelerando e a viola e as guitarras vão ficando confusas até atingirem o caos aos 4min45. É a combinação de destruição e excitação provocada pelo “pico”, apesar de o eu lírico estar mais interessado no primeiro aspecto: a droga é utilizada para anular a própria vida (“I’m gonna try to nulify my life”), para escapar das loucuras do mundo atual por meio de uma quase-morte (“And I thank God that I’m good as dead”). Definitivamente, a Era de Aquário não estava nos horizontes dos Velvets.

Completam o disco duas baladas (“Femme Fatale” e “I’ll be your mirror”), dois rocks mais ou menos convencionais (“Run run run” e “There she goes”) e a dobradinha “Black Angel’s Death Song” e “European Son”, estranhices que fecham o álbum.

O discurso desencantado, o uso de barulhos e a postura anti-comercial de The Velvet Underground & Nico faz com que ele seja considerado por muitos críticos como a gênese do punk. Dez anos antes dos Sex Pistols berrarem ”Não há futuro!”, o álbum já apontava que o sonho hippie era apenas uma viagem de ácido que acabaria logo. Lou Reed e cia. preferiam metedrina.

"Venus in Furs":
 
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